Ração de coelhinho

Do que é feita a sua saudade? Meu 'sentir falta' acorda de rosto assustado e com sorriso estampado, reclama da porta aberta, faz sinal de telefone com as mãos. Me liga pra avisar do almoço e coloca remédios junto ao café-da-manhã, quando respiro pela boca durante o sono. Reclama rindo de minhas cócegas e contra-ataca sem dó nem piedade, até que eu acorde o prédio inteiro. Esquenta minha cama, com secador de cabelos, nas noites frias e me abraça forte quando tudo parece perdido. Nos identifica em qualquer filme e fica triste quando tenho cigarros no bolso. Enche seu peito pra falar de nossa casa em Nova Iorque e ja mima nossos filhos mesmo antes de qualquer sinal de vida. Deitado na sala de nosso apartamento percebi que o dia lindo pode ser chuvoso e bem frio, contando com sua presença reclamando da minha mão fria. Percebi que a numerologia, os astros ou os signos estão a nosso favor (e se não estiverem a gente manda a merda e inventa outros). Minha saudade é linda, é minha.

Diário de bordo

Abri os olhos e ali estava eu sobre o seu tapete de Bem Vindo empoeirado. Sem entender muito bem bati na porta, bati e toquei campainha. Uma, duas, quatro, sete vezes: nenhuma resposta. Dei uma volta por toda sua composição e olhando pela janela entreaberta percebi que a casa laranja guardava imensos cômodos azuis. Entrei pela porta dos fundos, de mala feita.

Nús na sacada

Eu, que tanto quis te amar, te ter em meus braços, em tão pouco tempo. Te pintei em cores douradas e estampei a parede da sala. Percebi numa tarde qualquer que suas cartas na manga não se transformam em buquê. Na verdade, mal conhece o truque. Eu, que moldei meus passos rumo ao canto do quarto, perdi minha cabeça. Surtei verde-e-amarelo e toquei suas mãos geladas durante o filme chato. Inventei de inverter destinos, de usar seu brilho nos olho como motivo.Pedi um trago e você não entendeu. Foi pelo ralo.

Madrugada & Sede

Colocou uma faca em meu pescoço e sorriu, eu sorri também. Qualquer ato contrario me faria empurrar seu corpo para fora da cama, do quarto, da casa. Depois de cuspir no prato, calou suas poucas palavras. Suspirei sem saber o numero desse rolar de dados, aliás, se soubesse, desligaria a tevê sem pensar duas vezes. É assim, somos dois sedentos por pouco, por pistas... detalhes visíveis nem tanto.

Queridos verões passados

O frio aumenta minha saudade. É, acho que é assim que acontece. Preciso de lenha para a lareira, preciso de calor. Abraços, afagos ou qualquer unica palavra trocada no dia todo. Não qualquer lenha, quero meus combustíveis certos. Nesse domingo gelado mas de sol na janela, voltei paginas. Senti falta de todos, ate de quem não deveria; dos fósforos queimados que sempre tentei acender. Reencontrei mar de rosas alguns segundos depois. Afinal essa eterna caça ao tesouro nada mais é do que nosso globo de espelhos, e se não houvesse amor, não saberiamos dançar. Pensando melhor, bendita distância que fabrica futuro bom, tornando folhas passadas ainda mais amáveis.

Ode a impossibilidade

Tocou pela terceira vez. Ate esperaria por sua voz, se as impossibilidades não gritassem tão alto. Aos poucos, o que nunca existiu vai ficando ainda menor. Noites mais longas, dias tragados a pensamentos que jamais deveriam ter cruzado a fronteira entre inconsciente e desejo. Você tem medo, e talvez seja melhor assim. O problema é quando seu braço encosta no meu, quando seus olhos cruzam minhas fixações sem a menor intenção. Quando o quase dorme por um segundo. E toda rocha que demorei tanto moldar se dissolve. Lá se vão mais dois maços.

Espelho quebrado

Meu melhor amigo fuma quatro cigarros por dia
e me conta histórias antes de dormir.
Enxuga minhas lagrimas com suas próprias mãos
sem se preocupar.
As vezes de branco, as vezes vermelho,
faz de seus atos meu livro-surpresas.
Um dia brigamos, dei-lhe um soco.